Observatório de
Educação e Biopolítica (OEBIO) – PPGEDU - UNISC
15 de setembro de
2020
[OEBIO]** O seu livro Foucault e a Educação (2007) alcança um
público amplo dos estudiosos da educação, pois ao mesmo tempo em que levanta discussões sobre
a obra de Foucault que exigem certa iniciação, oferece uma boa orientação para
quem deseja se aventurar nos estudos do filósofo. Escrever um livro como esse
deve exigir uma reflexão estratégica: “por onde começar”? Isso implica em considerar,
com generosidade, os leitores. É, certamente, um dos livros que se indica para
quem pretende começar a ler Foucault
Considerando sua experiência nos estudos do autor, por onde orientaria um jovem
estudante a iniciar a leitura da obra? Qual livro de Foucault poderia servir de
porta de entrada?
[Alfredo] Eu agradeço o
interesse em fazerem esta entrevista comigo. Tentarei ser claro e sucinto.
Quando se trata de colocar Michel Foucault na conversa, isso não é simples.
A primeira questão: a reflexão estratégica que me
levou a escrever Foucault e a Educação.
De fato, lembro bem: quando me lancei a escrever aquele livro, logo vi que,
pela frente, eu tinha uma tarefa trabalhosa. Não parecia fácil escrever um
livro pequeno, que fosse claro e acessível para quem estivesse ingressando no
campo dos Estudos Foucaultianos e, ao
mesmo tempo, útil para quem quisesse articular o pensamento de Michel Foucault
com a Educação. Parecia mais um trabalho de Sísifo: a cada dia que eu retomava
a escrita, tinha de cortar, retocar, reescrever o que havia feito nos dias
anteriores. Todo dia era um eterno retorno; mas a cada repetição, acontecia a
diferença. Aliás, comigo é sempre assim: aos poucos, vou polindo o texto,
tornando-o mais legível, mais claro e gramaticalmente correto.
De fato, o polimento do texto resulta do gesto que eu
chamo de respeito ou consideração aos leitores e às leitoras. Talvez não seja
propriamente um gesto de generosidade, se entendermos que essa palavra tem mais
a ver com um ato de sacrifício e fidalguia de alguém a favor dos demais.
Prefiro falar em respeito e consideração, palavras que se situam
mais na esfera do político. Nesse caso, então, trata-se da combinação entre
duas atitudes políticas. Uma primeira atitude
é mais abrangente: eu escrevo para mim e
para os outros; nesse caso, não há lugar para o solipsismo. Se pretendo
comunicar com meu texto, ele só cumprirá tal função se quem o ler compreender o
que escrevi. A segunda atitude é mais
pontual: em educação, é um dever de ofício praticar um ensino que seja claro e
acessível ao maior número de pessoas. Não se trata de apenas comunicar
genericamente, mas de comunicar ― o mais corretamente possível ― a quem quer ou
precisa aprender. Um lamento: não é raro encontrarmos textos dirigidos a alunos
e professores ― ou seja, textos que se pretendem pedagógicos ― carregados de barroquismo,
hermetismo, afetação e erudição vazia. A minha estrada é completamente outra...
Se o meu livro é útil para quem pretende entrar nos
Estudos Foucaultianos, é necessário ter muitíssimo claro que é preciso, ao
mesmo tempo, ler o próprio Foucault. Costuma-se falar em “ir às fontes”. E por
onde começar? Seja em termos gerais, seja em termos específicos daqueles que
estão envolvidos na, pela e com a Educação, costumo sugerir Vigiar
e punir. Ao mesmo tempo em que Vigiar
e punir tem uma forte carga (digamos) teórica e histórica, ele pode ser
lido de maneira fluente, quase como um romance. Aliás, alguns dizem que, lidas
as suas primeiras páginas, é muito difícil não ir adiante.
[OEBIO] História
da loucura (1961), Vigiar e punir
(1975) e História da sexualidade II: o
uso dos prazeres (1983) são as três obras comumente apontadas como
marcadoras das três fases do pensamento de Michel Foucault. Como você vê essa
demarcação? Em que medida essa divisão ajuda ou atrapalha a compreensão do
pensamento do autor?
[Alfredo] Como bem
sabemos, de um modo geral as demarcações são problemáticas. Elas ajudam e
simplificam. Por ajudarem, elas são úteis e até valiosas; mas, justamente por
simplificarem, elas podem distorcer e/ou serem pouco rigorosas. Uma analogia
interessante podemos buscar nos estudos do Meio Ambiente. Dizemos que a
floresta amazônica e o cerrado são matas, pois são conjuntos de árvores, de
portes diversos e geograficamente localizados. Até aí, de modo genérico e
olhada de longe, a classificação vai bem; mas o problema complica muito quando
queremos olhar nos detalhes e demarcar onde uma categoria termina e onde começa
a outra. Aliás, essa é uma questão que envolve muitos debates e cujo fundo é da
ordem da Filosofia. Quais critérios usamos ou devemos usar para dizer que isso é isso, que aquilo é aquilo e que isso é diferente daquilo?
E mais: com qual detalhamento usamos cada critério? E mais ainda: onde termina isso e começa aquilo (e vice-versa)?
Uma saída, também filosófica, foi dada por
Ludwig Wittgenstein quando propôs que não levássemos tão a sério as
classificações categoriais, mas que, em seu lugar, usássemos o conceito de semelhanças de família. Nesse caso, os
elementos não são distribuídos pelas categorias “verticais” já antecipadamente
construídas, mas são relacionados “horizontalmente” segundo relações de
semelhanças e diferenças.
Voltemos a Foucault. No caso do seu pensamento
e da sua obra, costuma-se falar de fases: a fase arqueológica, a fase
genealógica e a fase da ética. Considero tal classificação muito ruim, na
medida em que não apenas centra-se nas metodologias usadas pelo filósofo como ―
também e pior ― mistura aquilo que se chama de métodos arqueológico e
genealógico com a ética (que nada tem a ver com método ou metodologia). Isso
tudo sem considerar as discussões que problematizam e questionam o próprio estatuto
metodológico da arqueologia e da genealogia...
Atento ao problema, segui Miguel Morey ―
nosso colega da Universidade de Barcelona ― e usei a expressão domínios: do ser-saber, do ser-poder e
do ser-consigo mesmo. Tal solução não
resolve completamente o problema, pois se sabe que, já em História da Loucura, além das perguntas sobre o ser-saber, há também as perguntas sobre o
ser-poder e do ser-consigo mesmo.
Lançando mão daquele conceito de
Wittgenstein para situar melhor o pensamento e a obra de Michel Foucault, se
compreendem as continuidades e os atravessamentos ao longo da sua numerosíssima
produção intelectual. E aí entenderemos claramente o fio-condutor que lhe dá
coesão: a questão do sujeito; a questão de saber como nos tornamos sujeitos,
isso é, saber quais são e como funcionam os processos nos quais, com os quais e
a partir dos quais nos tornamos
sujeitos. Lembremos sempre que sujeito é o indivíduo que se lança ou se atira
ou se coloca sob si mesmo: sub+jectum,
pois, em latim, o verbo jectāre
significa lançar, atirar. Assim, o sujeito é o indivíduo que, inventado na
Modernidade, é capaz de se autoanalisar, autojulgar etc.
[OEBIO] Foucault não foi um filósofo da educação e nem
a tomou como objeto de suas análises; contudo, o alcance de suas reflexões e as
ferramentas teórico-metodológicas que nos oferece são potentes para pensar a
educação. Vigiar e punir (1975) é,
certamente, um livro emblemático nas reflexões da área, abrindo o caminho do
pensamento foucaultiano nas pesquisas em educação. Por quais caminhos os
estudos foucaultianos da educação vêm sendo orientados hoje? Quais ferramentas atualizam
a reflexão foucaultiana na educação?
[Alfredo] Exatamente!
Vigiar e punir é uma obra
emblemática. Aliás, logo após o lançamento do livro, em 1975, e entusiasmado
com sua entrada nos estudos genealógicos, Foucault teria dito “este é o meu
primeiro livro”.
É muito interessante o fato de que, mesmo
sem ser um livro focado na educação escolar, Vigiar e punir tenha causado uma verdadeira revolução copernicana ―
em termos do enfoque, da abordagem e da metodologia ― nos estudos acerca das
origens, processos e efeitos (sociais, culturais, políticos, econômicos etc.)
da educação. Quando falo em revolução copernicana, me refiro à virada epistemológica
que aquele livro provocou: o foco deslocou-se do aparelho escolar como instituição para as práticas que ali se praticam. O centro do problema e o
ponto de partida deslocaram-se de uma
perspectiva legalista, institucional e burocrática para uma perspectiva acontecimental. Com tal deslocamento,
compreendeu-se a profunda descontinuidade entre a educação escolar moderna
ocidental e a educação escolar em outros tempos e em outras culturas. A palavra
escola pode ser a mesma, mas os sentidos
a ela atribuídos, bem como os efeitos que ela produz são radicalmente
distintos.
Foucault mostrou que o poder disciplinar
foi ― e, em alguma medida, continua sendo ― o denominador comum que aproxima
escola, fábrica, hospital, quartel, seminário etc., todos seguindo uma mesma
racionalidade. E mostrou mais: que tal racionalidade está nas origens tanto da
Modernidade ocidental ― aqui entendida mais como forma de vida e atitude,
e menos como período histórico ― quanto desse novo personagem ao qual chamamos
de sujeito moderno.
Além dessas bem conhecidas “aplicações” de
Foucault na educação, atualmente muitos pesquisadores têm se interessado na
articulação entre o terceiro domínio do filósofo e as práticas escolares. Em
outras palavras, estão afinando o foco sobre as (assim chamadas) “tecnologias
do eu” que são colocadas em movimento nas salas de aula, bem como os “efeitos”
de tais tecnologias na constituição ética das crianças.
[OEBIO] Foucault é um grande crítico das abordagens
universalistas. Para ele o único universal possível é a história. E a história,
para o filósofo, é contingente e indeterminada. Há uma radicalidade nessa forma
de olhar para a história que nos aponta para a potência crítica do pensamento de
Foucault. Poderíamos dizer, a partir dessa percepção da história, que “somos o
que somos, mas poderíamos ser outra coisa”? Como o pensamento do filósofo nos
auxilia a enfrentar o mundo que habitamos? O que é resistência para Foucault?
[Alfredo] Eis aí mais
um afastamento entre Foucault e boa parte dos historiadores, sociólogos,
politicólogos etc.: o entendimento de que o único a priori é o histórico. Muito diferentemente das Ciências Naturais,
nas quais é possível estabelecer, com algum grau de certeza, leis universais e
mais ou menos preditivas, nas Ciências Humanas a situação é completamente
diferente. Assim, por exemplo, para Foucault e muitos outros, não há “leis da
História”.
Quando digo “com algum grau de certeza” e
“mais ou menos preditivas”, aponto para o fato de que, como David Hume mostrou
há mais de 200 anos, a indução funda-se numa expectativa de natureza
psicológica e não numa certeza epistemológica. Isso significa que qualquer
previsão ― mesmo nas Ciências Naturais ― contém sempre um grau de incerteza, de indeterminação. Uma tal
imprevisibilidade não deriva de alguma suposta limitação ou incapacidade humanas,
mas está no caráter contingente do mundo. Para dizer de outro modo: o mundo não
é necessitário; o mundo é contingente. O necessitarismo é um mito, pois, assim
como tudo é diferença, tudo é também contingência. As similitudes, as
necessidades e os determinismos são criações ou construções humanas que
facilitam e até orientam o nosso pensamento e o nosso entendimento, que tornam
o mundo pensável e compreensível; mas não são inerentes ao mundo. Digamos que estão no mundo, mas não são do mundo.
A partir
dessa perspectiva, a História pode até nos apresentar algum grau de
previsibilidade, mas jamais de certeza. Isso é o mesmo que dizer que o a priori ― isso é, aquilo que está na
raiz de tudo, o “antes de mais nada” ― é sempre a História. A História não é
conduzida por leis ou princípios que seriam anteriores a ela.
Desse modo,
aquilo que é, é porque se tornou assim. Não se trata de um jogo de palavras;
trata-se de um afastamento radical em relação ao necessitarismo e a abertura
para a construção de outras realidades, outros mundos, outras práticas,
experiências outras. O futuro não está dado, mas aberto ao devir, de modo que há
algo sempre a ser feito, para melhorar ou para piorar nosso mundo.
Se as coisas são o que são não foi por
obra do destino ou de um desígnio transcendente, mas é porque assim foram
feitas; então, sempre é possível fazê-las de outros modos, resistindo àquilo
que não queremos, de modo a mudar o curso dos acontecimentos. Não se trata de
um simples voluntarismo, pois é preciso conhecer, ser hábil e competente para
executar as mudanças, sem contar que são necessárias certas condições de
possibilidade que independem de indivíduos isolados.
Neste ponto, entra em jogo mais uma
particularidade do pensamento de Foucault: a resistência não está fora daqui,
num lugar ou numa teoria de onde devemos buscá-la para alterar o rumo da
História. Para o filósofo, a resistência é o nome que damos para ações de poder
que vão no sentido inverso daquelas outras ações de poder que nos subjugam, nos
aprisionam, nos incomodam, nos prejudicam. Resistir é exercer o poder em
sentido contrário a um outro poder ao qual não queremos nos sujeitar.
[OEBIO] O entendimento do neoliberalismo como um éthos,
um modo de ser que nos incita à competitividade, à meritocracia e ao
empreendedorismo de si, colocou o mercado como eixo norteador da vida social.
Os movimentos inclusivos, nesse sentido, fizeram da inclusão um imperativo,
pois pode ser lida como uma forma mais ampla de captura, de colocar todos no
jogo. Assistimos hoje a um movimento de radicalização do neoliberalismo, com
desdobramentos no mundo do trabalho, como a flexibilização, a uberização, a precarização,
etc. É possível ainda falar de imperativo da inclusão?
[Alfredo] Essa é
uma questão muitíssimo interessante e que se situa no âmbito daquela famosa
frase de Foucault: “tudo é perigoso”. Com isso, o filósofo não quis dizer que
tudo é ruim, mas, sim, que tudo tem uma dupla face ou, se quisermos, tudo pode
ser visto como positivo ou bom e como negativo ou mau.
Ao
compreender o liberalismo e o neoliberalismo como éthos, como modos de estar no mundo e agir sobre o mundo, como
modos de vida enfim, Foucault abandona o surrado esquema das ideologias e
aprofunda sobremaneira as análises sobre o presente. No curso O nascimento da biopolítica, no Collège
de France, ao longo de muitas aulas Foucault expõe detalhadamente suas
pesquisas sobre as origens e os desenvolvimentos históricos do liberalismo e
das duas formas principais do neoliberalismo: o ordoliberalismo alemão e o
neoliberalismo da Escola de Chicago. Aqui no Brasil, parece que “importamos”
uma forma radicalizada, degenerada e socialmente malévola do segundo, que Foucault
chamou de anarcoliberalismo. Todas essas formas do neoliberalismo se centram na
competição, mais do que no consumismo, como fazia e ainda faz o liberalismo.
Claro que ainda há um consumismo exagerado, mas ele acontece principalmente em
função da competição de uns com os outros e até de cada um consigo mesmo.
É por aí que o imperativo da inclusão ―
condição necessária, mas não suficiente, é claro, para o bom funcionamento do
neoliberalismo ― perde, pelo menos parcialmente, sua imperatividade. Uma colega
nossa ― a Professora Kamila Lockmann, da FURG ― tem feito análises muito
interessantes sobre essa questão. Ela tem argumentado que a inclusão, nesses
cenários de crescimento do precariado, da uberização e de novas configurações
no mundo do trabalho, deixou de ser um imperativo; talvez, a inclusão geral e
irrestrita seja algo até mesmo “dispensável” para o bom funcionamento da
racionalidade neoliberal. Isso mostra a necessidade de ler e compreender Michel
Foucault, prestando atenção para o momento histórico em que ele desenvolveu seu
trabalho e nos ofereceu seus insights.
Temos aí um bom exemplo de um pensamento nômade, que rejeitava tanto as grandes
teorias das abordagens teleológicas universalistas, quanto as grandes sínteses
que falam de uma História Geral da Humanidade. No lugar do intelectual geral,
entra o intelectual específico; no lugar da continuidade, entram as
descontinuidades. Vê-se, assim, a necessidade de atualizarmos constantemente o
que podemos aprender com Foucault.
Recorro, aqui, à conhecida “classificação”
proposta por Richard Rorty. Esse autor estado-unidense dividiu os filósofos em sistemáticos ― que propõem teorias e
querem fazer a Filosofia seguir o “bom” caminho das Ciências ― e edificantes ― que não fazem teorias, mas
teorizações cujo objetivo é nos encantar e, como se fossem poetas, nos mostrar
que sempre há algo de novo sob o sol. Pois bem, Michel Foucault foi, sempre e
radicalmente, um edificante. Mesmo tendo sido ― e continuando a ser ― muito
importante e desafiador, é preciso ser lido e entendido nas limitações do
horizonte histórico e sociocultural de seu tempo. E é isso que abre, mais do
que a possibilidade, a necessidade de ser constantemente atualizado e
ressignificado. Trabalhar com ele ou a partir dele é um exercício de
liberdade.
[OEBIO] É recorrente, nas análises da chamada
“pós-verdade”, a acusação de que foi pela crítica pós-estruturalista da verdade
que se abriu o caminho para a profusão de um pensamento anticiência ― e mesmo anti-intelectual ― que
é mobilizado pelos movimentos da extrema-direita, a exemplo de Trump e
Bolsonaro. De que forma você, como estudioso do pensamento de Michel Foucault, autor
comumente citado nessas análises, compreende essa crítica?
[Alfredo] Esta
última pergunta exige uma resposta um pouco mais longa, começando com algumas
considerações acerca da verdade.
A posição de Michel Foucault em relação à
verdade segue bem de perto a posição de Nietzsche. Ao afirmar que “a verdade é
deste mundo”, Foucault assume um entendimento filosófico radicalmente
não-platônico. De costas para a Doutrina dos Dois Mundos ― segundo a qual
Platão colocava a verdade no mundo perfeito das ideias, e não neste nosso mundo
sensível e imperfeito ―, Foucault dizia que está tudo aqui mesmo; inclusive a
verdade. Ela existe, sim; e ela é deste nosso mundo, fabricada por nós.
Essa postura
filosófica é frequentemente mal compreendida. Muitos, mergulhados e ancorados no
platonismo, acabam afirmando que, para Foucault ― assim como para Nietzsche,
Deleuze, Wittgenstein, Rorty e vários outros ― a verdade seria qualquer coisa
que se afirme ser verdadeira. Entendem o não-platonismo como um vale-tudo e,
consequentemente, como promotor de um relativismo radical. Esse é um equívoco
grosseiro. Outros, também agarrados ao platonismo e imobilizados por ele,
acusam Foucault ― e aqueles outros que referi acima ― de terem destruído a
verdade. Ambas as leituras estão profundamente equivocadas, pois, nem a verdade
é qualquer coisa e nem mesmo se está negando a existência da mentira. Ambas ―
verdade e mentira ― existem, são deste mundo e podem ser
alteradas, refinadas, expostas, escondidas etc.
No plano das experiências e vivências
objetivas e materiais, existem verdades objetivas e, consequentemente, existem mentiras
(também objetivas). Assim, por exemplo, se eu jogar meu livro no chão, a frase
“ele jogou o livro no chão” será verdadeira; e a frase “ele não jogou o livro
no chão” será uma mentira, pois, de fato,
eu fiz isso (joguei o livro no chão). Ir contra um enunciado que apenas descreve
um fato objetivo é uma mentira evidente e, por isso, uma mentira deslavada;
nesse caso, é fácil desmascarar a mentira.
No plano das interpretações, ilações e
inferências, as mentiras podem assumir o caráter de engano, equívoco, erro,
ilusão, segundas intenções etc. Assim, por exemplo, se à frase acima eu
acrescentar “ele jogou o livro no chão porque ele não gosta de livros”, a
situação começa a ficar complicada. Esse “porque” introduziu um elemento
interpretativo que, indo além do fato empírico, poderia ser substituído por um
outro “porque”: (ele jogou o livro no chão) “porque ele não gosta desse livro”; e mais outro: “porque esse
livro lhe traz lembranças ruins”; e mais outro ainda: “porque esse livro estava
ocupando um espaço excessivo na mesa”; ou, ainda: “de fato, parece que ele
jogou, mas ele apenas deixou o livro cair no chão”. E assim por diante.
É aí, no plano das interpretações, que se
pode usar a mentira para fazer uma contraposição às verdades estabelecidas em
acordos comuns, assumidos pelos componentes de uma mesma comunidade
linguageira. Em qualquer caso, assim como existe a mentira, também existe a
verdade.
Isso que
alguns chamam de pós-verdade encerra
um duplo problema. Em primeiro lugar, esse uso hoje
inflacionado e abastardado do prefixo pós
é, por si só, um problema. Cada vez mais, parece que, num esforço para superar e
esquecer o passado, tudo passou a ser pós-isso e pós-aquilo. As relações entre
tal esforço e o colapso da temporalidade moderna ― pelo menos, nas maneiras
pelas quais o tempo foi percebido, representado e utilizado na Modernidade ―
são muito interessantes; mas aqui não cabe entrar em detalhes sobre essa
importante questão. Em segundo lugar,
o uso da expressão pós-verdade
implica assumir que vivíamos tempos em que as verdades eram verdadeiramente
verdadeiras e que, agora, tudo se relativizou, a ponto de se dizer que muitas
mentiras adquirem automaticamente o estatuto de verdade...
Nestes
tempos de fake news, e principalmente
para quem trabalha com educação, a problematização das verdades adquiriu uma
importância fundamental. Tenho proposto a expressão cheat news para designar aquelas notícias ou enunciações que,
maldosa e intencionalmente, contêm meias-verdades e/ou que misturam enunciados
(todos) verdadeiros de modo a levarem os desavisados a uma única e falsa
interpretação. Cheat, em inglês,
significa fraude, engano, trapaça, vigarice, impostura.
Ambas, as fake news e as cheat news, podem ser tão mais facilmente desarmadas e
desmascaradas quanto mais informados e inteligentes forem seus “alvos”. É óbvio
que isso tem tudo a ver com uma educação que desenvolva os pensamentos críticos
e lógicos e que ensine a resistir contra essas artimanhas das mentiras e das
meias-verdades. Quanto mais educada e escolarizada for uma sociedade ― ou seja,
quanto mais alfabetizada em geral e politicamente, mais intelectualmente
capacitada a estabelecer relações lógicas complexas, mais familiarizada com um
amplo repertório cultural, mais desparoquializada etc. ―, mais fácil será
desarmar e desmascarar as fake news e
as cheat news.
De certa maneira, neste ponto fecha-se um
círculo vicioso que indiretamente referi mais acima: a saber, a desvantagem que
representa a inclusão social e escolar para o “bom” funcionamento do neoliberalismo,
principalmente em sua versão anárquica, isso é, na versão do anarcoliberalismo.
Soma-se a tudo isso que, para aceitar ― e até se engajar deliberadamente com ―
a degradação das novas formas do trabalho e da vida social, é necessária uma
forte dose de desinformação (ou informação intencionalmente desqualificada) e
de estultice. Note-se que uso a palavra estultice,
e não burrice, para não ofender os
muares...
O negacionismo, o terraplanismo, as condutas
anticiência, o conspiracionismo, a teimosia estulta, o reptilianismo etc. são
manifestações que crescem no Brasil. Qual uma doença endêmica, a estultice
tomou conta do nosso país, desde as classes superiores da política e da administração
federal até as camadas mais humildes da população. Tal estado de coisas atinge
dimensões alarmantes quando levamos em consideração este momento histórico da
pandemia da COVID-19. A grande ironia atual consiste no fato de que, justamente
quando mais uma sociedade precisa cerrar fileiras em torno de comportamentos
preventivos e curativos inteligentes e baseados na Ciência, mais estultice revelam
amplos setores da política e da administração federal. Uma outra ironia, ligada
à anterior, é que os personagens que ocupam destacadas posições de liderança
nacional são, justamente, os que se mostram mais estultos, seja desobedecendo
acintosamente as unânimes recomendações técnicas especializadas, seja negando a
gravidade da situação.
Uma das raízes da estultice endêmica está,
certamente, numa escolarização historicamente deficiente ― elitista, facilitadora,
superficial, aligeirada, desigual e excludente. É claro que a estultice
endêmica não será exterminada por obra somente de uma melhor educação escolar.
Mas não tenho dúvida de que uma sociedade ampla e igualitariamente escolarizada
será muito menos estulta, mais autoprotegida e, consequentemente, mais resistente
ao atual ou a futuros surtos endêmicos, epidêmicos ou pandêmicos que porventura
nos atingirem.
Não tenho dúvida, também, de que uma
melhor escolarização ― igualitária, de bom nível, consequente, cuidadosa,
republicana e includente ― conseguirá, a curto e médio prazos, frear e até reverter
aquilo que não queremos do status quo
anarcoliberal, no Brasil. Um status quo, aliás, que depende também da
estultice geral. Eis uma tarefa que não se restringe à educação escolar, mas
que precisa da escola para se efetivar: colocar-se na contramão frente aos
cantos da sereia que são as máximas da moda e que hoje infestam o imaginário
popular, tanto no Brasil quanto fora dele. Além das acima referidas, coisas
como a competição desenfreada, o individualismo, o antagonismo, o pensamento
mágico, o consumo pelo consumo, o hedonismo, o utilitarismo, o produtivismo
desmedido e a espetacularização do eu poderão ser refreadas ou, no mínimo,
colocadas sob suspeição.
No âmbito da educação, também vale lembrar
os lamentáveis modismos de certas formas de aprendizagem ao longo da vida, do autoempresariamento,
da cega obediência à teoria do capital humano e seu endeusamento, da educação
domiciliar integral, da celebração da educação a distância como remédio para
todos os males, do foco exacerbado na aprendizagem (deixando o ensino em
segundo plano) etc.
É claro que Michel Foucault não tratou de
todos esses assuntos. Não só ele morreu antes de tais problemas e modismos aparecerem
como, sobretudo, seu radar estava dirigido para outras questões. Mais uma vez,
insisto em dizer que Foucault não é pau para toda obra! Mas também é claro que
ele nos deixou elementos para problematizarmos o nosso sufocante presente. Ele
deixou muito material e muitas ferramentas para trabalharmos.
Uma última lição que podemos tirar disso
tudo é a prática da hipercrítica,
aqui entendida como o éthos crítico
que coloca em xeque não apenas aquilo que está sob análise, mas também os
próprios pressupostos epistemológicos e teóricos sobre os quais e a partir das
quais ela é feita. Isso significa estarmos sempre abertos e livres para revisarmos
os limites e a carga de veridicidade das nossas próprias verdades.
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* Alfredo Veiga-Neto é graduado em
História Natural e em Música, mestre em Genética, doutor em Educação. Professor
Titular da Faculdade de Educação da UFRGS. Coordenador do GPCC (Grupo de
Pesquisa em Currículo e Contemporaneidade/UFRGS).
** Entrevista realizada pelo professor Mozart Linhares da Silva.
Como citar: VEIGA-Neto Alfredo. Entrevista Foucault e a Educação. Observatório
de Educação e Biopolítica: 21 set. 2020. Entrevista concedida a Mozart
Linhares da Silva. Disponível em: https://oebio.blogspot.com/2020/09/entrevista-com-o-professor-alfredo.html.